segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Superstições

Os leitores mais atentos sabem que fui um audiófilo. Durante anos procurei o melhor som possível dentro do meu orçamento e em condições acústicas adversas, tendo chegado a resultados satisfatórios (mas longe de perfeitos: ainda hoje tenho uma série de aberrações sonoras que só poderia eliminar se mudasse de ambiente acústico). O meu sistema é essencialmente o mesmo há doze anos: nunca senti necessidade - nem tive posses - para o evoluir, pelo que é uma verdadeira montra de arqueologia áudio. As únicas evoluções desde 2003 foram as aquisições de uma cabeça Ortofon 2M Blue para o meu gira-discos e um rádio Tivoli Audio Model One, ambas em 2009. Segue uma lista do meu equipamento.
  • Fontes: Gira-discos Rega Planar 3 com cabeça Ortofon 2M Blue, leitor de CD Rega Planet (o original), sintonizador/rádio Tivoli Audio Model One (ligado ao amplificador integrado com um adaptador, para ouvir rádio em stereo);
  • Amplificação: amplificador integrado Primare A20 MkII, pré-amplificador phono Musical Fidelity X-LP;
  • Colunas: ProAc Tablette 50, em cima de uns suportes baratos da Standesign;
  • Cabos: Todos Kimber Kable, excepto os de alimentação.
  • Mesas: um suporte de parede para o gira-discos e um móvel para as electrónicas, feitos por mim com painéis de contraplacado feitos de encomenda no «Freitas dos Contraplacados» em Frazão, Paços de Ferreira. 
Mais tarde descobri a fotografia, e desde então o meu sistema passa a maior parte do tempo desligado. É muito mais educativo, divertido e interessante andar à caça de boas fotografias do que sentar no vértice de um triângulo equilátero formado por mim e pelas colunas a ouvir música sem a apreciar, substituindo a fruição musical por considerações obsessivas do género: «como é que hei-de eliminar a ressonância dos graves?».
Esta alusão à alta fidelidade pode parecer algo deslocada, mas se a faço é porque encontro muitos pontos em comum entre a fotografia e a alta fidelidade enquanto hobbies. E nem sempre estas analogias acontecem pelos melhores motivos.
Uma característica que muitos audiófilos e fotógrafos amadores partilham é a crença na superioridade do digital. É uma convicção errónea na maior parte dos casos, nascida de uma confusão entre qualidade e comodidade (que são conceitos diferentes). Muitos deixam-se enganar por números: os megapixéis dos fotógrafos são os bits dos audiófilos. A qualidade - sonora e de imagem - é algo que não se exprime apenas em algarismos, tendo mais que ver com a percepção subjectiva do que com gráficos. Claro que, para conceber um bom amplificador ou uma boa lente, é necessário saber muito de ciência e tecnologia - mas essa é uma tarefa que deve ser deixada aos técnicos, não aos utilizadores. Contudo, fotógrafos e audiófilos perdem horas e horas das suas vidas debatendo os ISO e os megapixéis das suas câmaras e os bits e o upsampling dos DAC actuais. (DAC = Digital to Analogue Converter) Esta sobreposição de questões técnicas à apreciação subjectiva é comungada por audiófilos e fotógrafos amadores, e em muitos casos redunda em disparates que têm mais que ver com falta de conhecimentos técnicos do que com opiniões devidamente fundadas: são convicções adquiridas em fóruns e com a leitura de artigos de gente que sabe tão pouco como eles.
Um exemplo, na audiofilia, é a bicablagem das colunas de som: a maioria dos fabricantes inclui fichas de alimentação separadas para o tweeter e o woofer. Muitos imaginam ouvir uma melhoria na qualidade sonora quando usam fios eléctricos separados para os dois altifalantes. Eu também o fiz, até descobrir que o efeito da bicablagem é nulo. Hoje uso apenas um dos terminais de cada coluna para as ligar ao amplificador. Contudo, este é um argumento de vendas que os fabricantes usam para aumentar os seus lucros, usando argumentos pseudo-científicos que, de tão néscios, são equiparáveis a superstições.
O mesmo acontece na fotografia. Muitos deixam-se convencer que uma câmara é tanto melhor quantos mais pixéis tiver, quando a gama dinâmica é muito mais importante do que a resolução expressa em números de pixéis. E a treta do ISO, essa, mais vale não me pronunciar sobre ela. (Para quê, se já o fiz tantas vezes?)
Além disto, os audiófilos e alguns fotógrafos amadores ajudam, com as suas superstições induzidas por marketing enganador, a sustentar uma corja de charlatães que vendem fio eléctrico a €1.000,00 o metro ou tripés que custam mais do que o dobro do valor que mencionei. O negócio dos acessórios esotéricos é uma vigarice em que muitos alinham alegremente, graças a uma capacidade de auto-sugestão que os leva a julgarem ver ou ouvir melhorias na qualidade da imagem ou do som onde estas não existem, procurando justificar a aquisição de coisas que não fazem sentido nenhum, mas são caríssimas.
Outra característica comum é a atracção pelo tamanho. Para audiófilos e fotógrafos amadores néscios, o argumento do tamanho é tudo. As colunas têm de ser grandes, os amplificadores têm de ser monoblocos que requerem duas pessoas para os levantarem; e as câmaras só são boas se, além de serem grandes, tiverem um sensor enorme nas suas entranhas. Uma vez disseram-me que um sujeito tinha umas Wilson Audio WATT/Puppy 7 (v. imagem do topo) num quarto de 12m2. O sujeito devia ter todo o género de problemas acústicos que a interacção entre a energia sonora e os limites físicos da sala podem causar - mas tinha umas WATT/Puppy! Tal qual os amadores que compram uma Canon 5D para fazer fotografias dentro de casa, ao gato ou a painéis de cortiça, como já vi...
Tudo isto significa que as pessoas que descrevi não são amantes das artes da música e da fotografia: são tarados da técnica. O problema é que nem sequer percebem muito da técnica. Limitam-se a balbuciar umas coisas sem nexo como o «palco sonoro» ou a «abertura equivalente», conforme os casos, sem se aperceberem que não estão a fazer sentido.
É evidente que há gente inteligente no áudio e na fotografia. Estes riem-se a bandeiras despregadas dos mitos e superstições que enevoam as mentes de alguns audiófilos e fotógrafos amadores. Se os audiófilos disserem a um técnico de som que deram €1.000,00 por fio eléctrico para ligar as colunas ao amplificador, o mais provável é que se sintam vexados pelos escárnios do técnico (que sabe infinitamente mais que eles sobre som). Do mesmo modo, quando certos fotógrafos amadores estiverem diante de um fotógrafo profissional, devem evitar qualquer alusão à «abertura equivalente»: vão envergonhar-se a si mesmos...
Ludwig Wittgenstein escreveu: «Sobre aquilo que sabemos, devemos falar abertamente; sobre o que não sabemos, devemos manter-nos calados». É uma máxima que procuro seguir, mas há muitos que não o fazem e preferem falar do que não sabem.   

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