sábado, 17 de março de 2012

A promessa incumprida

As promessas não são para cumprir. Aliás, foi Mia Couto que escreveu que o prometido é de vidro: quebra-se facilmente. Já veremos a razão desta inclusão literária, mas para já vamos à promessa que não cumpri, facto pelo qual apresento as minhas desculpas aos leitores - a de escrever um texto por dia neste blogue. Há uma conjugação de factores que o justifica: o primeiro, o mais evidente, é a falta de temas. A fotografia é mais interessante quando se faz do que quando se escreve sobre ela, e de resto não é o manancial de assuntos que imaginei inicialmente. Pelo menos para mim, que sou ainda muito maçarico na fotografia. Podia parar, ou nem sequer ter começado, por haver tanta gente mais bem preparada do que eu para escrever sobre fotografia, mas a verdade é que neste pequeno país há tão pouca gente a fazê-lo me pareceu um imperativo começar este ISO 100. E escrever por imperativo por vezes cansa. Já por muitas vezes dei comigo a matutar intensamente sobre qual o tema que abordaria de seguida, sem encontrar resposta. Escrever sobre a técnica? Sim, fi-lo, a despeito dos meus conhecimentos serem ainda escassos, mas a intenção não era ministrar lições: era partilhar o que sei, mesmo sendo pouco; era instigar os leitores a fotografar, incutir-lhes o gosto pela fotografia e fazê-los ver que uma câmara evoluída não é nenhum Adamastor. Escrever sobre a fotografia enquanto forma de expressão artística? Também o fiz, mesmo se poucos me leram. Escrever sobre as câmaras e lentes que vão saindo para o mercado? Também, mas não era bem este o meu propósito: não quero reproduzir aqui o que leio nos websites e blogues. Isto é plágio, o triunfo da mediocridade sobre a criatividade.
A outra razão é o trabalho. Tem sido muito e absorvente, e nem sempre (re)compensador - o que, além de subtrair tempo, tem ainda o defeito de roubar alento e motivação para escrever (e às vezes para fotografar). Sabem aquelas pessoas que dizem que o trabalho fortalece o carácter e a moral? Façam-lhes orelhas moucas: são uns mentirosos. Quando as ouço, lembro-me sempre da inscrição Arbeit macht Frei pendendo sobre as cabeças dos condenados de Auschwitz-Birkenau (ou o Ó Vós Que Entrais... do velho Dante Alighieri). Neste particular, estou com Agostinho da Silva: o homem não nasceu para trabalhar, mas para criar. Seja como for, sem trabalho não havia subsistência, nem eu teria meios para manter a paixão por fotografia. (Na verdade é menos que uma paixão, mas é mais que um hobby: não conheço nenhuma palavra que caracterize com precisão a minha relação com a fotografia.) E viver sem trabalho, nos dias de hoje, é uma impossibilidade - um factor de exclusão, tédio e neuroses de dimensão variável.
E há uma terceira razão: a fotografia não é o meu único interesse. Há a música, à qual já me referi, mas há um outro ainda mais poderoso, que tem vindo a roubar-me muito do tempo que tenho disponível para escrever os textos do ISO 100; paradoxalmente (ou se calhar não), esse interesse é a literatura. E, neste momento, estou a ler um livro particularmente interessante e absorvente: Puta Que Os Pariu!, uma biografia do grande Luiz Pacheco escrita por João Pedro George. Devo dizer que não foi o título que me atraiu (que considero exemplificativo de uma boçalidade bem portuguesa), mas o biografado. Bem vêem: Luiz Pacheco foi dos homens mais admiráveis, em inúmeros aspectos, que Portugal conheceu. Penso, aliás, que Portugal não mereceu ter Luiz Pacheco como seu nacional: um homem como este está condenado a ser um pária neste país mesquinho cujos habitantes têm mente e alma de escravos. Era, decerto, um homem cheio de contradições: viveu como um libertino, mas exigia que os filhos sentassem à mesa com as costas direitas e os joelhos juntos; era opositor do aborto, mas engravidou e viveu modu maritali com uma rapariga de catorze anos, mas era - e não hesito nem por um segundo ao afirmá-lo - o autor que melhor tratou a língua portuguesa no Século XX. Ninguém escreveu tão bem como Luiz Pacheco desde, pelo menos, Eça de Queiroz. O seu estilo é cuidado, mas nunca rebuscado; por vezes - muitas vezes, mesmo - usou uma linguagem vernacular, mas esse emprego não obsta à qualidade literária dos seus escritos. É uma maneira de escrever fluída e musical (no que tem de rítmica) que nenhum autor moderno ou contemporâneo igualou. Infelizmente, Luiz Pacheco não escreveu aquela que seria a sua consagração enquanto escritor: um romance. Ele era o primeiro a comentar, com sarcasmo, este imperativo de escrever romances para se ser reconhecido como autor de prosa. Talvez não haja nenhum romance pachecal (um adjectivo delicioso que ele empregou com muita frequência), mas Luiz Pacheco escreveu um dos textos mais belos da literatura portuguesa (Rui Zink vai mais longe e estende o seu valor à literatura universal): esse texto é Comunidade. Bastaria este texto para que LP merecesse um lugar no Olimpo da literatura (e há tantos que não merecem estar lá em vez dele), mas a obra de Pacheco compreende mais textos: O Veado, O Teodolito, ou O Libertino Passeia Por Braga, a Idolátrica, o Seu Esplendor. E muitos mais, mas Comunidade é o mais brilhante de todos eles.
A minha admiração por Luiz Pacheco, que já era imensa, foi alimentada por esta biografia, cuja leitura tem ocupado uma parte substancial do meu pouco tempo livre. Com ela fiquei a conhecer melhor o autor que reputo de um dos maiores da literatura portuguesa, um homem que, a despeito de todas as dificuldades que viveu, se cumpriu ao transformar em actos a sua dedicação à arte que amou e que, em muitos aspectos, se sacrificou a ela. E quero agora, na sequência deste embalo literário, concluir a leitura dos contos de Anton Tchékhov, que interrompi há cerca de dois anos, e ler mais clássicos. Ainda há muitos que quero conhecer: Henry James, Alfred de Musset, mais alguns livros de André Malraux, Joseph Conrad, Turguenev, et al. E, se possível e o tempo não me faltar, quero conhecer alguns contemporâneos. Vai ser difícil escolher, com tanta gente a publicar livros nos tempos que correm, mas hei-de descobrir quem são os grandes autores dos nossos dias.
Há um outro motivo para este hiato nos textos, que é uma tendinite no ombro direito; mas este, ao contrário dos outros, é fácil de resolver: bastam (espero eu) uns anti-inflamatórios e umas compressas quentes, mas é o suficiente para me afastar do computador sempre que possível.
Aqui está uma longa explicação (talvez demasiado) para não ter escrito durante dois dias consecutivos neste blogue. Eu sei que é uma desculpa esfarrapada, mas às vezes ler é mais produtivo que escrever. E é, acima de tudo, um hábito que esteve suspenso durante muito mais tempo do que eu queria, e que pretendo retomar e não voltar a abandonar. Nem só a fotografia é arte.

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