sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

A democratização da fotografia (1)

Apetece-me desenvolver um pouco a noção de banalização da fotografia trazida pelo advento do digital, assunto que abordei en passant no texto de ontem. Tenho para mim que os fotógrafos se podem dividir em três grandes grupos; por ordem descendente, temos, em primeiro lugar, os profissionais e os amadores dedicados; em segundo lugar, os fotógrafos casuais e, por último, os fotógrafos patéticos. Este último - e é com enorme hesitação que os classifico como «fotógrafos» - compreende dois tipos de pessoas que me irritam até ao tutano: as que pensam que tiram grandes fotografias com uma compacta - melhor que muitos profissionais, dizem alguns - e as que imaginam que tiram grandes fotografias porque têm material muito bom. Com o preço do equipamento a atingir valores extremamente baixos, é fácil, a qualquer pessoa, tirar fotografias. Há milhões de boas fotografias em sites e blogues da Internet, e é fácil, com câmaras que praticamente fazem todo o trabalho pelo fotógrafo, que praticamente se limita a escolher um enquadramento, criar fotografias superficialmente boas.
Permitam-me começar pelo último grupo que referi. Dos que pensam que o equipamento é suficiente para fazer um bom fotógrafo, deixem-me dizer que estão enganados. A fotografia é uma arte; começa num conceito e termina na execução. O fotógrafo deve, antes de mais, ter uma ideia, ou um conceito de fotografia. É importante que saiba o que, e como quer fotografar antes de pensar no equipamento. A ideia precede o domínio da técnica, e o fotógrafo só deve enveredar pelo caminho potencialmente ruinoso da aquisição de equipamento depois de se certificar que tem visão de fotógrafo e mente de fotógrafo. O equipamento apenas serve para dar corpo à ideia. Um bom pintor não é aquele que usa as melhores telas, os melhores pincéis e os óleos mais caros: é o que tem as melhores ideias. A técnica apenas o ajuda a exprimir-se melhor. O que fez de Willem de Kooning um grande pintor não foi o conteúdo cromático nem a abstração da forma: foi a sua intenção ao pintar - mostrar o interior, a subjetividade dos retratados através da distorção da forma externa. Como também o fez, embora de uma maneira diferente e menos apelativa do ponto de vista estético, Lucian Freud. Ou mesmo a nossa Paula Rego. Contudo, há pintores que pensam que, por usar formas distorcidas e cores vibrantes, podem ser tão bons como W. de Kooning, passando-lhes completamente ao lado o facto de a) estarem a produzir pastiches e b) as suas criações serem vazias e artisticamente inúteis. Na fotografia há um nome que se eleva sobre todos os demais: Henri Cartier-Bresson. Muitos não o sabem, mas HCB foi ainda melhor como retratista que como fotógrafo de rua. Porquê? Porque os seus retratos exibiam a mente e a individualidade do retratado. E não foi a sua Leica que as captou: foi o seu olhar e a intuição artística e intelectual, que lhe permitiu interpretar a psique do retratado e trazê-la para o exterior, tornando-a visível através da técnica fotográfica. Isto é algo que não se aprende em workshops, nem é certamente ter uma grande câmara que vai, por si só, conferir esse atributo ao fotógrafo.
Samuel Beckett por Henri Cartier-Bresson
Ainda antes do equipamento, porém, há que considerar as noções de estética e design. O fotógrafo tem de compreender a maneira como os objetos se colocam no enquadramento e como as pessoas vêem uma fotografia. A tendência natural para colocar objetos no centro da imagem e geometricamente alinhados pode corresponder a noções intuitivas, mas raramente contribui para fotografias interessantes. Uma fotografia banal é uma fotografia banal, quer seja tirada com uma Nikon D4 ou com uma Samsung comprada no Minipreço. É importante que o fotógrafo compreenda que a fotografia, como qualquer outra arte, tem de ter um conteúdo, mas tem também de obedecer a regras (embora estas, por o serem, comportem exceções). Simplesmente, as regras existem com um propósito: o de tornar a fotografia inteligível para quem a vê. Porque a fotografia, se apenas tiver o significado o seu autor pensa que ela deve ter, não passa de um exercício fútil de onanismo. A fotografia é para ser vista por terceiros, e as regras de composição e enquadramento servem para tornar a fotografia percetível aos olhos de quem a contempla. Regras como a dos terços ou o isolamento do objeto em relação ao plano de fundo não são arbitrárias: basta pensar na forma como lemos para compreender o porquê de o objeto que o fotógrafo quer destacar tender, por regra, a ser colocado no terço superior esquerdo da fotografia: é por aqui que o olhar começa a percorrer a imagem. Ou na necessidade de não existirem, no enquadramento, objetos que compitam com aquele que se pretende realçar.
Não restem dúvidas que o mais importante, em fotografia, é a expressão artística. A técnica é importante, e o equipamento também, mas ambos são meros auxiliares. Servem para ajudar o fotógrafo a exprimir-se. Não são, deste modo - ou não devem ser, objetivos a prosseguir per se. Técnica sem expressão é um vazio, equipamento sem capacidade de exprimir uma ideia e sem domínio da técnica é nada.
Este texto já vai um pouco longo, pelo que vai ter continuação, na qual que me referirei a um grupo de pessoas a que já pertenci: a das que pensam que são grandes fotógrafos independentemente do equipamento.

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